Contextualizando as Relações Institucionais e a Luta dos Agentes de Combate às Endemias

04 abril, 2013


A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) foi criada em meio a esse cenário de transformações sociais, econômicas e políticas em âmbito nacional, sendo instituída em 19912, assumindo todas as ações de combate e de controle as endemias e de saneamento público domiciliar do país.
Durante os primeiros anos, a Funasa desenvolveu suas atividades de forma centralizada e pouco sistêmica. Esse período caracterizou-se pelo desenvolvimento de ações pontuais, setoriais e desarticuladas. Essa realidade, aliada às diferenças culturais das organizações que a originaram, dificultava sua integração ao Sistema Único de Saúde – SUS (EM Interministerial, 2002).
Poucos anos após sua criação, sofreu transformações em seu modelo organizacional, pautadas em uma revisão administrativa do Ministério da Saúde para implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), passando por um processo de descentralização das ações que, em novembro de 1998, foram transferidas para os Estados, municípios e para o Distrito Federal. A partir de agosto de 1999, passou a assumir a execução das ações de promoção, proteção e recuperação da saúde da população indígena brasileira. Nesse período, teve início a luta dos ACE3, que, regidos sob contratos temporários, foram demitidos em meio ao processo de descentralização e re-ordenamento organizacional institucional. Sua história está relacionada ao quadro epidêmico instalado no Estado do Rio de Janeiro entre 1986/1987, que desencadeou a realização de campanhas de combate à dengue e outros agravos transmitidos por vetores. A primeira contratação ocorreu em 1988 e, em 1999, esses trabalhadores foram demitidos, dos quais, 280 eram mulheres grávidas e vários trabalhadores contaminados pelo uso contínuo de inseticida (Boletim Informativo Focalizando, 2006).
Frente às demissões, por meio de inúmeras manifestações públicas no Rio de Janeiro, os trabalhadores organizados iniciaram uma luta buscando garantir o retorno às atividades, que exerceram durante um período aproximado de 11 anos. Em agosto de 19994, montaram acampamento em frente à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro e, ao final do mesmo mês, foi publicada uma liminar para reintegração provisória (por um período de seis meses) dos trabalhadores demitidos, determinação judicial não cumprida pelo governo federal.
Em 2002, iniciam-se então as negociações coletivas entre os ACE e representantes do governo, tendo como resultado a aprovação, na Câmara dos Deputados e no Senado, da Medida Provisória 86/03, que determinou a reintegração dos 5.792 ACE. Apesar do retorno, permaneciam com o vínculo trabalhista precário, já que a reintegração foi por contrato temporário de dois anos. A luta dos trabalhadores continuou pela regularização definitiva de sua situação trabalhista, pondo fim à vulnerabilidade a que estiveram submetidos por tanto tempo. Nesse sentido, somou-se às conquistas da categoria profissional a edição da Medida Provisória 297/06. Esta estabeleceu que todos os trabalhadores reintegrados fossem regidos pela Lei 9962/20005, com seus direitos e deveres resguardados pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), como empregados públicos.

Procedimentos Metodológicos.

Para realizar o trabalho de campo buscamos uma aproximação com representantes da instituição, mais especificamente com a Coordenação de Controle de Vetores (CCV)6 e integrantes da Comissão de Saúde do Trabalhador desta coordenação. Em seguida, definimos que o universo da pesquisa seria de dez ACE, pois assim teríamos a representatividade de todas as Unidades Regionais de Governos da CCV no município de Nova Iguaçu. A participação dos trabalhadores foi voluntária, sendo designado a cada supervisor de área informar sobre a pesquisa aos agentes sob sua responsabilidade, em razão do curto tempo para início da pesquisa. Ao final, realizamos cinco encontros, de aproximadamente duas horas, durante cinco semanas consecutivas, no próprio espaço da CCV.
Quanto ao quadro teórico-metodológico, adotamos um referencial de pesquisas realizadas no campo da saúde do trabalhador, o qual conjuga produção de conhecimento e intervenção, bem representados pela expressão “compreender para transformar” (Guérin e col., 2001; Brito e Athayde, 2003). Nessa perspectiva, o processo de compreender a relação entre saúde e trabalho é inseparável de sua transformação; a ação transformadora é também teórica: ela se produz e se transforma em íntima relação com o conhecimento crítico da realidade histórica concreta. Complementarmente, adotou-se, como base de investigação, os estudos participativos (Brandão e Streck, 2006) e o enfoque da educação popular (Freire, 1977; 1988). O encontro profícuo entre essas duas vertentes potencializa aspectos existentes em ambas, como, por exemplo, o caráter transformador e a vocação emancipatória, possibilitando que uma investigação social produza conhecimento de forma compartilhada e sirva instrumentalmente aos movimentos populares. Por sua vez, a educação popular contribui para a fundamentação pedagógica da pesquisa participativa, conciliando interpretação crítica (filosófica) e ação política como momentos inseparáveis do processo de pesquisa, contrapondo-se à epistemologia positivista e binária, que postula a separação entre os pólos do conhecimento (pesquisador/pesquisado e teoria/prática).
“Em uma pesquisa de cunho pedagógico, adota-se o diálogo como relação fundamental” (Brandão e Streck, 2006, p.13). O diálogo, no paradigma da educação popular e dos estudos participativos, mais do que se constituir como pedra angular da relação pedagógica da pesquisa, possibilita a apreensão dos dados de investigação. É possível, a partir do conteúdo do diálogo, a identificação de temas que são matérias para a análise interpretativa das falas. Nessa linha de compreensão, os grupos de discussão são fontes de conhecimento e fornecem dados a serem objetos de admiração e de interpretação crítica, conferindo uma conotação epistemológica ao diálogo (Freire, 1977).
Diferentemente dos enfoques tradicionais de pesquisa qualitativa, na perspectiva freireana é o próprio grupo que produz e elege os temas para aprofundamento no decurso do diálogo. Os temas surgem espontaneamente, não existindo um roteiro prescrito de questões ou um ordenamento de perguntas a ser aplicado. Os temas levantados são denominados “temas geradores” (Freire, 1988), que podem ser compreendidos como unidades de registro primárias para a análise qualitativa do conteúdo das discussões. Trata-se de uma tarefa interpretativa pela análise da enunciação. Da mesma forma, Minayo (1994) afirma que os temas (na pesquisa qualitativa) são unidades de registros em torno das quais se realizam reflexões. A dinâmica nos grupos de discussão com os ACE propiciou um repertório amplo de conteúdos para se debater a relação saúde-trabalho. A rigor, os temas selecionados são a chave para a compreensão da percepção e comportamento dos trabalhadores diante dos problemas de saúde.
Esta pesquisa foi conduzida dentro de padrões éticos dispostos na Resolução CONEP nº 196/96 e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP/Fiocruz – CEP/ENSP nº45/07.


Referências
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2003.
BESEN, C. B. et al. A estratégia saúde da família como objeto de educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 57-68, jan./abr. 2007.
BOLETIM INFORMATIVO FOCALIZANDO Histórico da luta: 18 anos de luta até a vitória. Rio de Janeiro: Sintsauderj, ago. 2006. p. 02.
BORNSTEIN, V. J.; STOTZ, E. M. Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitário de saúde: uma revisão de literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 259-268, jan./fev. 2008.
BRANDÃO, C. R.; STRECK, D. R. A pesquisa participante e a partilha do saber: uma introdução. In: Brandão C. R.; Streck D. R. (Org.). Pesquisa participante: o saber da partilha. São Paulo: Idéias & Letras, 2006. p. 7-20.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado.
BRAVO, M. I. S. Serviço social e reforma sanitária: lutas sociais e práticas profissionais. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
BRITO, J.; ATHAYDE, M. Trabalho, educação e saúde: o ponto de vista enigmático da atividade. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 239-266, 2003.
CAMPOS, A. Violência e trabalho. In: Mendes, R. (Org.). Patologia do trabalho. São Paulo: Atheneu, 2002. p. 1641-56.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
DANIELLOU, F. A ergonomia em busca de seus princípios: debates epistemológicos. São Paulo: Edgar Blücher, 2004.
DEJOURS, C. O trabalho como enigma. In: Lancman, S.; Sznelwar, L. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Fiocruz; Brasília: Editora Paralelo 15, 2004. p. 127-140.
EM Interministerial nº 030/MS/MP. Brasília, 30 de abril de 2002. Submete à Presidência da República o projeto de lei que dispõe sobre os Sistemas Nacionais de Epidemiologia, de Saúde Ambiental e Saúde Indígena e cria a Agência Federal de Prevenção e Controle de Doenças – APEC. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/EXPMOTIV/EMI/EMI030-MSMP-2002.htm. Acesso em: 24 out. 2012.
FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra,1977.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
GUÉRIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Editora Edgard Blücher:Fundação Vanzolini, 2001.

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